Tocar o Coração do Assunto (Portuguese Translation)

Tocar o Coração do Assunto (Portuguese Translation)

Apenas este é o caminho.
Para purificar sua visão, não há nenhum outro.
Siga-o
E você desnorteará Mara.
Siga-o
E você irá pôr fim ao sofrimento.

As Quatro Nobres Verdades

Em uma ocasião, o Bem-Aventurado estava residindo em um bosque em Kosambi. Então o Bem-Aventurado pegou algumas folhas em sua mão e dirigiu-se aos bhikkhus assim: “O que vocês pensam bhikkhus, o que é mais numeroso: estas poucas folhas em minha mão ou naquelas árvores do bosque?” “Ó venerável senhor, as folhas que o Bem-Aventurado pegou em sua mão são poucas, mas aquelas no bosque são numerosas.” “Então também, bhikkhus, as coisas que eu o conheço diretamente, mas não os ensinei são numerosas, ao passo que as coisas que os ensinei são poucas. E por que, bhikkhus eu não ensinei aquelas tantas coisas? Porque não são benéficas, elas são irrelevantes aos fundamentos da vida sagrada… e não conduzem à paz…” Samyutta Nikaya v.437-438

Como este sutta nos mostra, o Buddha ensinou somente uma parcela muito pequena do que sabia. Em outra ocasião, o Buddha disse: “Eu ensino uma coisa e uma coisa somente, sofrimento e o fim do sofrimento”. Esta é uma das definições mais simples da prática buddhista e fala sobre nossa capacidade de nos movermos do sofrimento para a libertação em relação do sofrimento. Deste lugar, podemos encontrar o mundo de uma maneira compassiva e receptiva. Nossa tradição é muito simples. Alguns podem sentir que é pobre porque apenas tem um punhado das folhas. Não tem todas as folhas de todas as árvores no bosque. Alguns podem se deslumbrar tentando focar sobre a imensidade de todas as folhas. Na tradição Theravada o foco está na compreensão do sofrimento e como se tornar livre dele, como se tornar feliz. O que precisamos saber para nos tornarmos livres é realmente muito pouco. Em seu primeiro sermão, “Girando a Roda do Dharma,” o Buddha ensinou sobre o sofrimento e o fim do sofrimento sob a forma das Quatro Nobres Verdades. Após mais de 2500 anos elas nos chegam como o âmago dos ensinos do Buddhismo. Quase todas as tradições buddhistas consideram as Quatro Nobres Verdades como os ensinamentos centrais. Intelectualmente, são fáceis de compreender, mas diz-se que uma compreensão profunda do impacto destas Quatro Verdades é possível somente para alguém cuja libertação está inteiramente amadurecida. Quando formulou o ensino das Quatro Nobres Verdades, o Buddha tomou emprestado um modelo médico. Na época do Buddha, os doutores reconheciam o problema, definiam sua causa, formulavam o prognóstico para uma cura, e prescreviam então um plano de ação. O Buddha adotou esta formulação quando declarou as Quatro Nobres Verdades:

  1. O sofrimento ocorre.
  2. A causa do sofrimento é o anseio.
  3. A possibilidade para o término do sofrimento existe.
  4. A cessação do sofrimento pode ser alcançada através do Nobre Caminho Óctuplo.

Penso que é significativo que ele escolheu seguir um modelo médico, porque evita a metafísica. As religiões do mundo tendem a ser impregnadas com crenças metafísicas ou cosmológicas que os seguidores são exigidos a aceitar antes que o restante do sistema possa fazer sentido. Mas o Buddha sentiu que a especulação metafísica não era benéfica na compreensão da libertação, na libertação do sofrimento. Ele evitou o dogma. Ofereceu as práticas e as introspecções que podemos verificar por nós mesmos, ao invés de uma doutrina em que acreditar. Certamente, parte do esplendor das Quatro Nobres Verdades é que oferecem um guia à vida espiritual sem a necessidade de aderir a nenhuma crença metafísica.

A Verdade do Sofrimento

A Primeira Nobre Verdade diz simplesmente que o sofrimento ocorre. Não diz: a “Vida é sofrimento”. Que o sofrimento ocorre talvez não pareça uma afirmação particularmente profunda. O sofrimento vem com o ser humano. A dor é uma parte da condição humana. Nós damos uma topada com o dedo do pé, e ele dói. Nossas costas doem. Mesmo o Buddha era sujeito ao sofrimento físico; às vezes declinou dar uma palestra sobre o Dharma por causa de dor nas costas. A dor emocional é inevitável se estamos abertos ao mundo.

Quando outras pessoas sofrem em torno de nós, se estivermos abertos a elas, às vezes nós mesmos, através de nossos poderes da empatia, nos sentimos incomodados. Faz parte de ser humano relacionar-se e sentir o que está acontecendo ao redor. Entretanto, dor não é o tipo de sofrimento de que o Buddha estava tentando nos ajudar a nos tornar livres. No contexto das Quatro Nobres Verdades, podemos distinguir entre o sofrimento inevitável e o sofrimento opcional. O sofrimento opcional é criado quando reagimos à nossa experiência – por exemplo, com a raiva pelo sofrimento inevitável da dor, ou se apegando à alegria. Quando sofremos por dor física ou doença, podemos nos tornar autocríticos: “O que eu fiz de errado para isto acontecer comigo?” Atacamos a nós mesmos, ou culpamos os outros. Ou ficamos raivosos, tristes ou deprimidos sobre o sofrimento no mundo. Um sofrimento opcional é adicionado quando reagimos com aversão ou apego, justificação ou condenação. Estas reações adicionam complicações e sofrimento a nossas vidas. É possível experimentar a dor inevitável da vida de uma maneira direta, descomplicada. Se a dor é inevitável, a vida é muito mais fácil se nós não resistirmos a ela. Assim, o ensino das Quatro Nobres Verdades não promete o alívio do sofrimento inevitável que surge do ser humano. O sofrimento tratado pelas Quatro Nobres Verdades é o sofrimento ou estresse que surge pela maneira que escolhemos nos relacionar com nossa experiência. Quando nos apegamos, é doloroso. Quando tentamos manter nossa experiência a uma distância, para afastá-la, isso também é doloroso. Apegamo-nos ou afastamos para longe nossa experiência em uma variedade infinita de maneiras. A maneira de praticar com as Quatro Nobres Verdades é tornar-se muito interessado em nosso sofrimento. Os textos antigos dizem que ninguém chega ao caminho buddhista exceto através do sofrimento. De uma perspectiva buddhista, o reconhecimento do sofrimento é sagrado; é digno de respeito. Precisamos estudar nosso sofrimento, para o conhecermos bem, da mesma maneira que esperamos que nossos médicos levem nossas doenças a sério. Se o sofrimento é poderoso em nossas vidas, temos uma motivação forte para estudá-lo. Mas nem todo o sofrimento é monumental. O que podemos aprender de um sofrimento mais sutil ajuda-nos a compreender o sofrimento mais profundo em nossas vidas. Assim é igualmente importante estudar o sofrimento menor em nossas vidas: nossa frustração com um engarrafamento, ou irritação com colegas de trabalho. Podemos estudar nosso sofrimento atendendo a onde e a como nós nos apegamos. O Buddha enumerou quatro tipos de apego para ajudar-nos a compreender nosso sofrimento e sobre o que sofremos. O que os ocidentais podem considerar mais fácil desapegar é o apego às práticas e éticas espirituais. Podemos nos agarrar à nossa prática porque nos apegamos à esperança de liberdade do sofrimento. Podemos nos agarrar às regras da prática espiritual, pensando que tudo que é exigido de nós é simplesmente seguir as regras. Ou podemos usar nossa prática para criar uma identidade espiritual. Nós podemos nos agarrar à nossa prática para fugir da vida, ou podemos nos agarrar a preceitos e éticas em busca de segurança. Às vezes, achamos o caminho buddhista tão maravilhoso, que nós nos tornamos apegados à idéia de conseguir que outros pratiquem também. Apegar-se à prática espiritual causa sofrimento para nós mesmos e incômodo para os outros. O segundo tipo de apego é o de se agarrar às opiniões. Isto inclui todas as opiniões, histórias ou julgamentos a que nós nos agarramos. Estes podem ter um domínio poderoso sobre nós e em nossa percepção do mundo a nossa volta. Acreditar nas opiniões e basear nossas ações nelas é algo que poucos de nós questionam. Muitas de nossas emoções surgem de nossas opiniões; mesmo nosso sentido de self pode ser construído a partir delas. Um exemplo clássico que ilustra como as opiniões criam emoções é como você pode reagir se alguém falta a um compromisso com você. Você tinha uma hora marcada, você está esperando no frio em uma esquina, e a pessoa não aparece.

Isto é tudo que está acontecendo realmente. A tais fatos, nós frequentemente adicionamos uma história: a pessoa não me respeita. Com essa avaliação, surge a raiva. A raiva não surge porque estamos em pé em uma esquina e alguém não apareceu. A raiva surge porque nos fixamos na história, que pode ou não ser verdadeira. A pessoa poderia ter tido um acidente e estar na sala de emergência de um hospital. Nós precisamos saber quais são nossas interpretações ou suposições e então segurá-las suavemente, preparados para a possibilidade de não serem verdadeiras. Ou se provarem verdadeiras, precisamos então saber agir sabiamente sem nos apegar nem mesmo à verdade. A terceira forma de apego é agarrar-se a um sentido de self. Nós construímos uma identidade e agarramo-nos a ela. A construção de uma identidade ou de uma autodefinição é, na verdade, a construção de um ponto de vista. É a “história de mim”, e nós nos agarramos a ela ao invés de apenas deixar as coisas serem como são. Manter e defender uma autoimagem pode ser muito trabalhoso. Pode abastecer muita pré-ocupação incômoda com como nós falamos, nos vestimos e nos comportamos. Avaliamos tudo de acordo com como se relaciona a nós, causando-nos um sofrimento infinito. O quarto tipo de apego é ao prazer sensual, que inclui a aversão ao desconforto. Nos textos buddhistas, este é o primeiro na lista de coisas a que nós nos apegamos; eu o coloquei por último porque às vezes as pessoas o acham desencorajador. O prazer sensual por si só não é o problema; nossa vida nos trará muitos prazeres sensuais. O problema é que nós nos apegamos a eles. William Blake expressa isto lindamente: Ele que a si mesmo amarra uma alegria Destrói as asas da vida. Mas ele que beija a alegria enquanto ela voa Vive ao sol-nascente da eternidade. O apego aos prazeres dos sentidos é tão dominante que muitos de nós tem a sensação de que algo está errado quando as coisas são desagradáveis. Mas as sensações desagradáveis são apenas sensações desagradáveis até que nós lhes acrescentamos uma história. Confundir prazer com felicidade é um combustível poderoso para o apego ao prazer. Uma parte importante de prática espiritual buddhista é a descoberta de uma felicidade não conectada aos objetos de desejo e do prazer. Com esta descoberta, o encantamento sedutor do prazer sensual começa a diminuir.

A Verdade Da Causa Do Sofrimento

A palavra dukkha, que traduzimos como sofrimento, é intimamente conectada à palavra sukha, que significa felicidade. Ambas têm a mesma raiz: – kha, que significa, etimologicamente, o centro de uma roda. O du – significa o “mau”, enquanto su significar “bom”.  Portanto etimologicamente, dukkha significa “uma roda fora de equilíbrio” ou “uma roda descentralizada”.

A Segunda Nobre Verdade diz que o que nos torna descentralizados, que causa nosso sofrimento, é a ânsia. Em pāḷi, a palavra é taṇḥa, que significa literalmente sede. É traduzida às vezes como desejo, mas isto tende a sugerir que todos os desejos sejam um problema. O que causa o sofrimento é o desejo (ou a aversão) que é impelido, compulsivo. Ânsia significa ambos: ser impelido para experiências e objetos, assim como ser compelido a afastá-los para longe. Sendo a ânsia sutil ou densa, se não estivermos vigilantes, não estaremos cientes de como ela contribui ao nosso sofrimento.

A razão parcial pela qual o Buddhismo põe um foco enorme sobre o momento presente é que o sofrimento ocorre somente no momento atual. Além, a ânsia, a causa daquele que sofre, ocorre somente no momento presente. Mesmo quando as condições para o sofrimento ocorreram no passado, o pensamento ou a memória daquelas condições estão ocorrendo no presente. Nós enfatizamos o momento presente em nossa prática como uma tentativa de compreender claramente como ânsias funcionam no momento presente. No momento presente podemos encontrar ambas: a causa e o alívio de nosso sofrimento.

Assim, simplesmente, o momento presente é o lugar onde compreenderemos as Quatro Nobres Verdades. Enquanto praticamos, primeiro tentamos nos estabilizar no momento presente. Nós nos acomodamos em nosso corpo, escutamos sons ou sentimos as sensações da respiração. Uma vez que estamos no momento presente, podemos começar a explorar nossa experiência: para o que somos compelidos, de que nos afastamos, como criamos nosso sofrimento.

A Verdade Da Cessação Do Sofrimento

A Terceira Nobre Verdade expressa a possibilidade de libertação, da cessação do sofrimento. Quando vemos nosso sofrimento e compreendemos claramente como surge a ânsia, nós sabemos que a liberdade do sofrimento é possível quando a ânsia é liberada.

A palavra nibbāna ou nirvāṇa se refere à libertação em relação ao sofrimento. Enquanto a tradição Theravāda descreve às vezes o nibbāna como uma grande felicidade ou paz, ele é mais frequentemente definido como resultado da ausência completa de apego ou de ânsia. Uma razão para esta definição negativa é que o nibbāna é tão radicalmente diferente do que pode ser descrito com palavras que o melhor é não tentar. Outra razão é para que o objetivo da prática buddhista não seja obscurecido por especulações metafísicas sobre a natureza do objetivo.

Ainda há outra razão para a definição negativa do nibbāna: evitar confundi-lo com todos os estados de ser específicos. Tornamo-nos facilmente apegados aos estados tais como a calma, a paz, a alegria, a claridade e radiantes de luz que surgem às vezes durante a prática da meditação, mas que não é seu objetivo. Nós podemos acreditar que precisamos alcançá-los se quisermos compreender a Terceira Nobre Verdade. Mas se nos lembrarmos que o não apego é o meio de se libertar então estaremos menos inclinados a nos apegar a qualquer estado. Não se apegue a sua felicidade. Não se apegue a sua tristeza. Não se apegue a nenhuma realização.

A Verdade Sobre O Caminho Para A Cessação Do Sofrimento

Deixar todos nossos apegos não é fácil. Desenvolver a compreensão, a compaixão, e a observação vigilante para ver bem o suficiente para abandonar nosso sofrimento é bastante difícil. A Quarta Nobre Verdade é pragmática; descreve, em oito etapas, o caminho que conduz à liberação em relação ao sofrimento. O Nobre Caminho Óctuplo dá-nos as etapas que nos ajudam a criar as circunstâncias que tornam a maturidade espiritual possível. Eles são:

  1. Compreensão Correta (Visão Correta)
  2. Pensamento Correto (Intenção Correta)
  3. Fala Correta
  4. Ação Correta
  5. Meio de Vida Correto
  6. Esforço Correto
  7. Vigilância Correta
  8. Concentração Correta

Essa lista é ensinada às vezes sequencialmente. O praticante as desenvolve em ordem, primeiramente esclarecendo sua compreensão e intenção a fim permanecer fora das estradas tangenciais ao caminho simples das Quatro Nobres Verdades. Então, ajustando seu comportamento no mundo de modo que possa sustentar o desenvolvimento interior do Esforço Correto, da Vigilância Correta e da Concentração Correta. Nesta abordagem sequencial, o praticante não completa cada etapa antes de seguir para a seguinte. Mas sim, a prática segue um caminho espiral na qual se retorna continuamente ao começo, cada vez com maior profundidade.

Às vezes a lista não é ensinada como um caminho para ser desenvolvido sequencialmente. As oito etapas são apresentadas como oito aspectos do caminho, que são desenvolvidos juntos. Apoiam-se mutuamente, cada um nutrindo o outro. A lista é abrangente; mostra-nos como podemos trazer a completa extensão de nossas vidas para o caminho da prática. Nós podemos ver isto quando esses oito são categorizados com as divisões do corpo, da fala e da mente. Ação e Meio de Subsistência Corretos pertencem às nossas atividades corporais, Fala Correta as verbais, e o restante concerne à mente e ao coração.

O Caminho Óctuplo é dividido algumas vezes nas três categorias de ética, de práticas internas e de introspecção (sīla, samādhi e paññā). Neste caso, a Fala Correta, a Ação Correta, e o Meio de Subsistência Correto, como aspectos de ética, são ensinados como o começo do caminho. Depois do desenvolvimento da ética, as práticas internas do esforço, da vigilância e da concentração conduzem ao desenvolvimento da introspecção ou da sabedoria.

O Caminho Óctuplo oferece um mundo rico da prática. Estudar e familiarizar-se com todos os oito vale o tempo e o esforço. Dos Oito, a tradição vipassana enfatiza particularmente a observação vigilante. Em parte, isto é porque quando a prática da observação vigilante é meticulosa, os outros aspectos do Caminho Óctuplo seguem em seu rastro.

A observação vigilante é igualmente o elemento chave para a transformação da libertação. A prática da observação vigilante é o veículo para realizar as Quatro Nobres Verdades. Na prática da observação vigilante, aprendemos como colocar a atenção no momento presente de modo que quando o sofrimento surge, possamos observá-lo. Podemos nos interessar pelo sofrimento em vez de fugir dele. Podemos aprender como estar confortáveis com o sofrimento, de modo a não agirmos inapropriadamente por causa de nosso desconforto. Então podemos começar a compreender suas raízes e abandonar os apegos.

Todos os ensinamentos do Buddha são elaborações das Quatro Nobres Verdades. Ao compreender este punhado das folhas, uma vida espiritual pode ser direta e prática. Todos nós podemos vivenciar a enorme alegria e paz que vêm da libertação dos apegos.